Contos da Segunda - HOJE

  Hoje
                                            Silas Correa Leite

 
    Hoje eu resolvi não existir esse dia. Ponto.
O rádio-relógio soou um jazz improviso do Louis Armstrong,  deixei tocar um pouco, depois stop. Quem manda no meu tempo sou eu. Desligo, click.
   Puxei o lençol da cor de burro quando foge, acertei o torto travesseiro de penas de ganso, com uma fronha de ancorazinhas azuis, e refugei acordar, sair da cama, etc. Ratiei feio.
Enfurnei-me sob o lençol como se fora uma caverna ancestral, uma fenda do tempo e do espaço, uma tenda de milagres. Bodiei.
Fiquei de tromba. Levantar para quê? Trabalhar para quê? Estudar para quê? Ler muito para quê? Para ter consciência do inevitável? Escrever, pra quê? Para ninguém ler? Levantar para ver essa sociedade regurgitar ódio de infelizes sádicos e mal-amados? Trabalhar como lacaio de um patrão corrupto que paga mal e nos faz de bucha de canhão via mídia abutre? Estudar as lições deles reproduzindo eles, e nós sermos ovelhos negros como reprodutores desse sistema amoral, podre? Pois é, baby, pensei com os botões do meu pijama de bolinhas amarelinhas.  Ferrado e mal pagos, isso é o que somos?
      Lá fora a gritaria das crianças no parquinho. Volta e meia um palavrão de pai ou de mãe ou empregada podando os filhos de serem crianças. Freadas bruscas. Gente correndo como baratas tontas de um lado para outro. O condomínio tem zelador; cada quarteirão também deveria ter um? E sindico, vigia, ouvidor... as ruas da amargura. Faróis quebrados. Balas perdidas. A tal da ascensão social dói...
    O sol lá fora num verão ardente, o quarto na penumbra, e eu procurando sarna para me coçar. Depauperado. Depressão? Baixa estima? Sinto um cheio de café, ah delícia... Pulo da cama. A mulher saiu cedo. Aqui em casa, marido e esposa trampão em três lugares. Pensa que é fácil conquistas limpas na vida? Meia, lenço, cueca, documentos, toalha no sofá. O banho e o que preciso usar para sair pro trampo.  A mesa posta. Sento de pijama mesmo e tomo um golpe de café. A baguete de gergelim me olhando feito um braço com vitiligo. O bule a cara da manhã. Azul e com pose. Ligo o rádio, Taiguara canta minha dor: “Não existe essa manhã que eu perseguia... um lugar que me dê trégua e me sorria... uma gente que não viva só pra si...”
     Tiro os chinelos. Descalço num chão frio. Olho a janela, o horizonte azul lados da serra do Taboão. Janelas abertas sobre o Butantã. O cachorro da vizinha late no corredor. Da portaria ligam avisando que o vendedor de frutas está na entrada. A musa me deixa recado no celular que minha consulta no psiquiatra foi confirmada.  Visto-me. Como um pedaço de queijo. Depois um iogurte grego. Olho-me no espelho do banheiro. Quem sou aquilo? Quem sou esse? Desculpem, estou no corpo errado. 
Volto a deitar de roupas e sapatos, cheirando café. Entro embaixo do lençol cor de burro quando foge, e ali tento voltar a ser eu mesmo; quero minha vida de volta, mas o travesseiro parece ser de pedras do mar de tranquilidade da lua, e as ancorazinhas azuis da fronha me fazem mergulhar num sono profundo, muito profundo, sono profundo como prenuncio da morte, como muito bem diz Shakespeare.



Conheça um pouco de Silas Correia Leite
      Professor, conselheiro diplomado em direitos humanos, jornalista comunitário, ciberpoeta e escritor premiado, livre pensador humanista, consta em mais de oitocentos links de sites, até no exterior, entre eles Cronópios, Observatório de Imprensa, Correio do Brasil, EisFluências, Pravda (Rússia) e outros, Prêmio Lygia Fagundes Telles Para Professor Escritor, Prêmio Paulo Leminski de Contos, Prêmio Ignácio de Loyola Brandão de Contos, Prêmio Biblioteca Mário de Andrade (São Paulo, Gestão Marilena Chauí), Prêmio Literal (Fundação Petrobrás, Curadoria Heloisa Buarque de Hollanda),   Prêmio Instituto Piaget/Cancioneiro infanto-juvenil, Portugal, vencedor do Primeiro Salão Nacional de Causos de Pescadores (USP-Parceiros do Tietê/Jornal O Estado de São Paulo/Rádio Eldorado) entre outros, publicou em revistas, jornais, tabloides, fanzines, como Revista da Web, Trem Itabirano, Panorama Editorial, Revista Construir, DF Letras, Mundo Lusíada (Portugal), etc. Autor, entre outros, de Porta-Lapsos, Poemas, All-Print, SP, Campo de Trigo Com Corvos, contos premiados, Editora Design, SC (finalista no Telecom, Portugal), DESVAIRADOS INUTENSILIOS, Editora Multifoco, GOTO, A Lenda do Reino do Barqueiro Noturno do Rio Itararé, romance,  GUTE GUTE, Barriga Experimental de Repertório, romance, e O Menino Que Queria Ser Super-Herói, romance infantojuvenil, ambos a venda site Amazon e do ebook de sucesso O RINOCERONTE DE CLARICE, onze contos fantásticos, cada ficção com três finais, um final feliz, um final de tragédia e um terceiro final politicamente incorreto, destaque na grande mídia (Estadão, Diário Popular, Revista Época) inclusive televisiva, por ser o primeiro livro interativo da rede mundial de computadores, tendo sido entrevistado por Márcia Peltier (Momento Cultural/Jornal da Noite, REDE BAND), Metrópolis e Provocações (TV Cultura), entre outros, e a obra, por ser pioneira e única no gênero, foi recomendada como leitura obrigatória na matéria Linguagem Virtual, do Mestrado de Ciência da Linguagem da UNIC-Sul de SC, tese de Mestrado na Universidade de Brasília e tese de Doutorado na UFAL. Seu estatuto de poeta foi vertido para o espanhol, francês, inglês e russo. 


Contatos: poesilas@terra.com.br

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