Crítica: Salem e o Espelho da Epseidade — Entre Anne, Mary e Dorian Gray
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Crítica: Salem e o Espelho da Epseidade — Entre Anne, Mary e Dorian Gray
A série Salem se destaca não apenas pelo terror histórico ou pela reinvenção da mitologia das bruxas, mas sobretudo pelo estudo profundo da epseidade — esse “ser de si mesmo”, o núcleo identitário que se transforma e se corrompe conforme as escolhas se acumulam. É justamente nessa dimensão que as personagens Anne Hale e Mary Sibley atingem seu ponto mais fascinante: cada uma percorre uma jornada que é o espelho invertido da outra.
Anne Hale: da pureza ao abismo
Anne começa como uma jovem sensível, empática e moralmente orientada pelo bem. Sua epseidade inicial é marcada pela ingenuidade e pelo desejo de compreender o próprio poder sem ferir ninguém. No entanto, Salem entende que o poder sem estrutura emocional é um convite à tragédia. Aos poucos, Anne se rende às tentações da autonomia absoluta: controlar a vida e a morte, moldar o mundo aos seus desejos, decidir quem merece existir.
Sua queda não é súbita; é uma descida em espiral, uma erosão lenta do “eu” que ela acreditava ter. Anne
se torna má não por natureza, mas por convicção, acreditando que seu poder legitima seus atos. É o mesmo movimento do próprio Dorian Gray, que, ao contemplar sua verdadeira alma deteriorada na pintura, percebe que o mal não nasce de fora — ele é acumulado, justificado, racionalizado.
Assim como Dorian vê no quadro a materialização de sua decadência, Anne vê nas bruxas e nos rituais o reflexo da mulher que se tornou: poderosa, mas moralmente irreconhecível.
Mary Sibley: das trevas à redenção
Mary, ao contrário, inicia a série envolta em escuridão. Sua epseidade é construída a partir da dor, de traumas e da necessidade de sobreviver num mundo que a esmagaria se fosse dócil. Ela se apresenta cruel, estratégica, manipuladora. Mas Salem subverte a lógica tradicional: Mary não se torna má — ela parece má, porque sua máscara é a única forma de proteção.
À medida que a narrativa avança, Mary revela nuances de compaixão, amor e sacrifício. Sua essência, antes camuflada, emerge. A mulher que manipulava vidas se torna aquela disposta a perder a própria. É a jornada inversa de Anne: enquanto uma se corrompe ao abraçar o poder, a outra se humaniza ao perder o controle dele.
Se Anne é o espelho de Dorian Gray — o poder que corrói — Mary se aproxima da ruptura final do próprio Dorian: o momento em que ele encara o retrato e deseja modificar sua alma. Mary olha seu reflexo interior e escolhe transformá-lo, mesmo que o mundo continue a vê-la como vilã.
Salem e Dorian Gray: quando o verdadeiro rosto aparece
O paralelo entre Salem e O Retrato de Dorian Gray se torna mais evidente quando observamos como ambas as obras lidam com a visão da alma verdadeira.
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Em Salem, quando as bruxas são obrigadas a encarar sua verdadeira aparência — seu “eu espiritual”, sua marca moral — temos um espelho brutal da epseidade. O que elas escondem sob rituais e glamour se torna visível.
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Em Dorian Gray, o quadro é o espelho absoluto: cada mentira, cada assassinato, cada pecado se materializa no rosto monstruoso da pintura.
A revelação visual do mal é o momento máximo de horror em ambas as histórias. Não é o feitiço, nem o demônio, nem a violência. É o reconhecimento de que não há como fugir daquilo que se é.
Conclusão
Salem se destaca por inverter e subverter trajetórias morais. Anne e Mary são duas curvas ascendentes edescendentes que se cruzam no ponto mais humano possível: o confronto com a própria epseidade. Enquanto Anne perde a si mesma ao acreditar que o poder é justificação, Mary reencontra sua essência ao perceber que o amor é redenção.
Assim como Dorian Gray diante de seu retrato, ambas descobrem que o verdadeiro terror não é a magia — é o reflexo da própria alma.
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